sexta-feira, 30 de abril de 2010

A SORTE ESTÁ LANÇADA



O astuto Salomão Mazuad teve duas filhas: Georgette e Lourdinha. Aquela casou-se com um rapaz do Rio de Janeiro e esta foi desposada por um distinto libanês chamado Constantin Al Salha. Em razão do matrimônio, a noiva trouxe o jovem Costy (apelido carinhoso pelo qual o chamava) para Floriano. Em terras de São Pedro tiveram uma vida plena. Viviam com conforto e desfrutavam de vida social ativa. Porém, em seus últimos anos, Costy Al Salha não gostava de sair muito. Estava começando a envelhecer e ganhara alguns quilos extras por causa da farta e boa comida que lhe era servida. Encontrou um meio de se distrair e preencher o tempo sem precisar sair de casa ou, caso fosse necessário, de não precisar se deslocar muito. Descobriu que suas tardes poderiam ser mais interessantes e menos nostálgicas se as passasse na companhia de um patrício seu contemporâneo jogando gamão, que é um jogo muito comum entre os árabes. Consiste de um tabuleiro chamado “taula”, que significa “mesa”, dotado de doze casas triangulares do lado de cada jogador. Nessas casas dispõem-se quinze peças pretas e quinze peças brancas para os dois adversários e, através de astúcia com a matemática e de sorte com um par de dados lançados a cada rodada, essas peças são movidas pelo tabuleiro e, enfim, uma a uma, vão sendo removidas dele. Ganha o jogo aquele que as remover primeiro.
Logicamente, Costy aproveitava-se dessas ocasiões para discutir sobre a política do Oriente Médio e manter uma boa conversa na língua árabe. Era sua maneira de matar as saudades do Líbano deixado para trás.
Dois carcamanos eram parceiros quotidianos e Costy: Hagem Mazuad, um carcamano que residia logo atrás da Igreja Matriz (e que era primo de sua esposa Lourdes) e Mohamed Aborabi, irmão do Ibrahim da famosa Casa das Sandálias.
Como Hagem e Costy eram vizinhos, passavam mais tempo juntos nesta saudável competição. Hagem era uma pessoa muito instruída e de conversa extremamente agradável. Escrevia lindas poesias e crônicas em árabe e eventualmente as lia para Costy. Foi Hagem quem fez o discurso de saudação ao Embaixador Sírio Ghassoub Rifai, quando este visitou a Princesa do Sul por ocasião do Centenário da Imigração Árabe (uma grande festa comemorativa que aconteceu no Calçadão da Rua São Pedro em 1989).
Por outro lado, Costy também gostava da companhia de Mohamed, pois ele era o único compatriota libanês, haja vista que todos os carcamanos de Floriano eram sírios, exceto os da família Salha e Aborabi (A bela esposa de Salomão Mazuad também era libanesa e chamava-se Isabel Abu Qais, mas voltou para sua terra natal onde vive até hoje. Se houve outros, não há registro disponível até agora).
Durante muitos anos, os três amigos jogaram quase que diariamente, revezando os adversários conforme a conveniência.
Mas, infelizmente, o tempo fora inclemente com o trio de carcamanos. Muitos anos já haviam se passado desde que imigraram para o Brasil e o árduo trabalho diuturno a que se submeteram durante toda a vida prejudicou-lhes na velhice.
Assim Hagem Mazuad foi o primeiro deles a atender ao chamado do Criador. Foi um dia de pranto e luto na Colônia. Os carcamanos remanescentes fecharam suas lojas para, juntamente com muitos descendentes de sírios, irem ao velório prestar suas últimas homenagens.
Costy se abalou bastante com a perda de Hagem, de modo que algum tempo se passou até que voltasse ao tabuleiro de gamão com Mohamed Aburabi.
Logicamente, o laço de amizade entre os dois libaneses era forte e, certa tarde, retornaram às longas e freqüentes partidas e conversas. Jogaram juntos por cerca de dois anos, até que, repentinamente, o Criador também subtraiu Mohamed do nosso convívio. Costy lamentou profundamente a perda do amigo de tantas tardes alegres, quando gritavam bem alto em árabe os lances de dados.
E foi assim que se acabaram as partidas de gamão para Costy. Não tinha mais com quem conversar sobre política, ou literatura. A partir de então, só falaria em árabe com a esposa e com os filhos e netos, pois os amigos e patrícios contemporâneos, Deus já tinha levado.
Quando a saudade das partidas de gamão começou a lhe apertar o peito e as tardes já estavam compridas demais, Costy resolveu ensinar o jogo dos árabes a seu motorista, um homem muito superticioso chamado Lúcio.
Quando o velho árabe lhe clamou o nome com a voz melosa e derretida, Lúcio imediatamente desconfiou que uma bomba viria e se preparou para dizer alguma coisa que lhe rebatesse o pressentimento funesto.
Costy lhe propôs:
― Lúcio, o que você acha de aprender a jogar gamão e me fazer companhia todas as tardes? Desde que Hagem e Mohamed morreram, fiquei sem parceiro de gamão…
Lúcio fez uma careta e exclamou cheio de pavor:
― Deeeeeeus me livre, seu Costy! O senhor já enterrou dois parceiros de gamão! Deus que me defenda!!! Não quero ter a mesma sorte que eles de jeito nenhum!

Um comentário:

  1. A sorte dos jogadores era muito boa, pois viveram anos-a-fio. O Lúcio estava enganado!

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