sábado, 3 de abril de 2010

UM BRINDE DIFERENTE


Pode parecer engraçado, mas o choque das culturas de Floriano e Barão com Khabab e Maalula envolveu os aspectos mais diversos. Roupas, idioma e culinária foram apenas as facetas mais evidentes. Pequenas coisas ou atitudes também podiam chocar bastante os forasteiros. Exemplo disso é o natural ato de soltar pum. Se para o brasileiro um barulhento pum em público pode ser uma coisa vexatória, para o carcamano é um escândalo sem precedentes! É motivo para fugir da cidade, deixando tudo para trás. Por saberem disso, alguns filhos de carcamanos de Floriano costumam brincar, dizendo que sua gente veio para o Brasil fugindo da vergonha de um sonoro peido que algum ancestral teria soltado no meio de uma missa lá na Síria.
Isso gerou muitas histórias engraçadas sobre o assunto, como a descrita a seguir:
Numa quente noite no deserto sírio, na volta para Khabab depois de negociações com gente mulçumana, uma caravana de sírios católicos caminhava, puxando aquela enorme cáfila de camelos abarrotados de especiarias, sedas e azeite. Muitos conversavam alegremente, como era costume, cantando músicas folclóricas ou rezando o rosário em voz alta para passar o tempo e vencer a distância.
Um desses viajantes era muito rico e abastado, procedente de uma das melhores famílias de Khabab. Isso ajudou a transformá-lo também num mercador muito bem sucedido e conhecido em todo o Governadorato do Houran. Tinha a conversa muito agradável, mas, estranhamente, naquela noite, sempre andava mais a frente ou mais atrás, em relação aos companheiros de jornada. O motivo do auto-isolamento era justamente porque esse sírio jantara, na noite anterior, gostosos e apimentados charutos feitos de folha de repolho, cozinhados por habilidosas mulçumanas donas da estalagem onde se hospedara. O efeito, no dia seguinte, foi aquele esperado pelo leitor atento: flatos de todos os sons e dos piores aromas…
Um dos carcamanos que ia nessa caravana, não era de Khabab. Era novato no metiê comercial, mas, a despeito disso, muito perspicaz e observador. Reparou logo que o árabe rico se isolara e, não demorou muito, desconfiou do por quê.
Aproximou-se sorrateiramente do peidão e esperou pelo pum, que veio ruidoso e demorado. Nem bem o companheiro terminou de soltar o gás, ele exclamou a toda altura:
― Eita, que esse foi de cinco metros! Começou cinco metros atrás e só parou aqui!
O sírio rico se aperreou. Ficou branco do susto e depois vermelho de vergonha e, quando se recuperou, suplicou:
― Por favor, não conte a ninguém que eu fiz isso na sua frente, ou meu comércio estará acabado…
O forasteiro disse-lhe muito judiciosamente:
― Não se preocupe, pois sei ser grato a quem me presta favores. Como você sabe, sou forasteiro e não gozo de nome (nem bom nem mau) por estas paragens. Mas, se você, que é conhecido na praça comercial, me fizer uma reverência, todos vão pedir informações sobre mim, de modo que poderei obter muito lucro vendendo minhas coisinhas.
― De que tipo de reverência nós estamos falando? ― perguntou o khababi entendendo a chantagem.
― De coisa simples. ― disse o forasteiro cofiando os bigodes ― Apenas um cordeirinho do seu rebanho que você vai mandar abater e preparar com ervas finas para comermos num jantar que você oferecerá aos seus amigos mercadores em minha homenagem.
― Combinado! O sacrifício de um cordeiro pelo sacrifício de ficar calado. ― concordou o rico, vendo que não tinha alternativa senão sucumbir à chantagem.
E assim aconteceu. Muita gente importante de Khabab e de outros lugares do Governadorato de Houran estava presente na casa do comerciante, que oferecia um suntuoso banquete em honra a um estranho muito posudo e cheio de trejeitos. O anfitrião sentava numa das cabeceiras de uma longa távola retangular, enquanto que o homenageado estava acomodado na outra. Eventualmente este soltava uma pilhéria àquele, dizendo em voz alta que não iria se servir dos charutos de folha de repolho ou de coalhada por não lhe assentarem bem à barriga…
O anfitrião baixava a cabeça envergonhado, mas nada dizia. Estava completamente à mercê de um estranho. Teve uma idéia. Encerraria o jantar (e, por conseguinte aquele suplício) com um brinde, exaltando as “qualidades” do estranho, de modo a deixá-lo satisfeito. Levantou-se e começou a bater numa taça com uma colher. Ao ouvir o titilar produzido, toda aquela gente fez silêncio e dirigiu suas atenções aos protagonistas da festa. O anfitrião pigarreou e começou a falar:
― Prezados amigos, chamei-os hoje a minha casa e a minha mesa por um motivo muito especial. Hoje comemos e bebemos com um estranho. Um forasteiro de paragens desconhecidas que…
Antevendo uma desgraça, o forasteiro levantou-se e interrompeu o brinde dizendo:
― Senhoras e senhores, o que o nosso anfitrião está querendo dizer é que hoje comemos e bebemos aqui reunidos, mas não é em minha honra. Todos vocês conhecem seu lado comerciante, mas a verdade é que comemos e bebemos em homenagem aos ruidosos peidos que ele é capaz de soltar na frente de estranhos! Por que você não solta um agora?
Todos começaram a gargalhar. A vergonha se abateu sobre o anfitrião, que levantou a cabeça e a voz para dizer:
― O que vocês não sabem, é que este forasteiro estranho não passa de um chantagista que quer que eu vá para o Brasil pra tomar conta do comércio de Khabab! Eu serei o último dos khababis a ir pra Floriano! Podem rir, mas não deixei meu lar por causa dos turcos e não vou deixá-lo por causa deste forasteiro!
Todos pararam de rir diante da coragem do comerciante. A verdade é que todos tinham parentes no Brasil, fugidos da guerra, mas ele não. Era um patriota convicto. Embaraçados com a situação os convidados saíram silenciosamente, admirando a lição de moral recebida. O forasteiro, que não sabia das migrações para o Brasil e não entendeu direito o que se passara soltou:
― Pode ser corajoso, mas ainda é um peidão!
Um dos convidados virou-se para o forasteiro e disse:
― Cale sua boca jovem! Será que você não entendeu que aqui somos todos peidões? Nós é que somos os covardes, pois não temos a coragem desse homem de bem de enfrentar inimigos cruéis! Há alguns anos ele enfrentou os malditos turcos quando ninguém teve essa ousadia. Mas hoje ele fez uma verdadeira façanha: enfrentou todos os fidalgos da cidade. Gente rica, de posses e de pose. ― finalizou sentenciando: ― A sociedade pode ser muito pior que os otomanos e é bom ter isso em mente sempre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário