domingo, 11 de outubro de 2009

Atendendo ao gentil pedido do vice-prefeito de Floriano, Dr. Oscar Procópio, publico o texto dessa semana do voz na net:

120 ANOS DE IMIGRAÇÃO ÁRABE PARA FLORIANO

A despeito do objetivo principal desta coluna, que é registrar fatos acontecidos e inventados pelo povo de Floriano envolvendo carcamanos, muita gente me manda e-mails pedindo que escreva sobre documentos, sobre Geografia e História da Síria, que traduza textos e cartas de parentes ou mesmo músicas (tem gente que pede até que eu publique receitas de minha mãe!). Alguns justificam afirmando que tudo isso é cultura árabe. Realmente, seria interessante mais registros dessas coisas na literatura…
Outro dia inventei de traduzir o Hino da Síria para o português (só a primeira parte, que eu gosto mais) e publiquei no meu orkut por dois dias. Alguém de Floriano espalhou na Internet de maneira exponencial! No dia em que vi as publicações, percebi que a internet tem um poder de alcance realmente incrível… Por isso não gosto que falem mal de Floriano na internet. Especialmente quando filhos de Floriano o fazem.
Mas, deixando isso de lado, percebi que comentar documentos, traduzi-los ou registrá-los foi tarefa abraçada previamente por uma pessoa incrível, chamada Josefina Demes. Fui ao vernissage de seu livro póstumo, intitulado “Floriano: Sua História, Sua Gente” e vi uma coisa fantástica: A sociedade de Floriano e os descendentes de sua colônia árabe unidos para festejar o lançamento. A despeito da hipérbole, posso dizer que li o texto de uma só lapada! Estou muito feliz com o conteúdo do livro e com a maneira objetiva que foi escrito. Simplesmente é uma referência obrigatória para quem escreve ou estuda sobre o assunto “Floriano”.
Seria muito bom que os florianenses e os carcamanos se reunissem em prol do legítimo “florianismo” mais vezes. Não temos uma festa típica como o “Oktober fest” das colônias alemãs, mas bem que poderíamos ter… Atrairia turistas, traria rendas ao município, uniria as famílias e manteria acesa a chama da cultura árabe que teima em arder em Floriano.
A última reunião como a do vernissage da Dra. Josefina aconteceu, de fato, nas comemorações do Centenário da Imigração Árabe, em julho de 1989.
Resolvi remexer nos documentos da minha família. Achei coisas muito interessantes como muitas fotos, documentos de imigração para o Brasil, batistérios e certidões de casamento em árabe, centenas de cartas e dois discursos magníficos. Um destes discursos foi proferido pelo então Senador João Lobo ante o Parlamento Sírio e o presidente da República da Síria, Hafez al Assad, quando da reunião de todos os parlamentares descendentes de sírios que viviam no Brasil e em toda a América Latina na época (não encontrei data, mas foi nos anos 80). O outro foi proferido pelo Sr. Hagem Mazuad durante essas já faladas comemorações do Centenário da Imigração Árabe de Floriano.
Assim, aquiescendo ao pedido de muitos leitores, transcrevo o primeiro discurso, baseado no princípio de que os pronunciamentos políticos são patrimônio público logo após serem proferidos por seus autores e como forma de homenagear o Senador João Lobo e o povo de Floriano.

“Discurso proferido pelo Senador João Lobo ante o Parlamento Sírio e perante o Presidente da República da Síria, Hafez al Assad, quando da reunião de todos os parlamentares descendentes de sírios que vivem no Brasil e em toda a América Latina.

Exmo. Senhor Presidente Hafez al Assad,
Exmos Senhores Parlamentares,
Senhores,

No momento em que pisamos o sagrado solo de nossas origens, o fazemos com grande e profunda emoção, conscientes da generosidade do sangue que daqui saiu, num dado momento, para fecundar um vasto e desconhecido continente.
A sofrida Síria de então, sufocada pelos conquistadores, sem horizontes, no sofrimento, deu ao Novo Mundo boas sementes, que haveriam de ajudar a construí-lo, com a sua cultura, com a força de seus braços e o seu enorme espírito de sacrifícios.
Assim foi no Brasil como em toda a América Latina. Somente que lá, a imensidão da terra, quase um continente, constitui-se em terreno propício: dos rios extremos avançando pelas florestas impenetráveis da Amazônia, nas agrestes e calcinadas terras do Nordeste, nas montanhas alterosas, até as onduladas cordilheiras do Rio Grande, estes homens bravos e anônimos, que daqui saiam, quase sempre sem recursos e sem passaportes, ajudaram a construir um país novo, um país generoso.
Sua cultura, seu exemplo, sua lealdade tocaram fundo o coração da nova terra. Hoje, podemos presenciar a festa deste parlamento, a festa dos filhos que voltam com títulos e galardões, para o colo da mãe, para depositar no seu regaço o que somos e dizer-lhe que, se somos algo, é porque ela nos dotou de sua seiva, que era boa e abençoada.
A tenacidade, a dureza e a coragem daqueles homens que daqui emigraram, o seu sofrimento na solidão e no desconhecido daquelas terras ainda serão cantados em versos imorredouros.
As mulheres que daqui também saíram escreveram uma epopéia à parte; a fidelidade da mulher síria, a sua luta silenciosa na casa, criando os filhos e ajudando o marido nas suas ausências.
Assim, Senhor Presidente Hafez al Assad, em nome da Delegação Brasileira que hoje aqui se apresenta, queremos saudar e homenagear a Síria histórica, como também a Síria moderna de Assad. Nesta expressão, incluímos, como forma de respeito e reverência, o querido Líbano, a Palestina, a Jordânia e todos os países que comungam os atos objetivos da nação árabe.
Foi na unidade que os árabes alcançaram sua maior glória, pois levaram à Europa, na Idade Negra, sua cultura, protegendo as artes e criando colégios e universidades.
Dominaram por oitocentos anos Portugal e Espanha, e daí a forte influência que exercem na língua e na cultura do Brasil e dos países irmãos da América Latina.
É com emoção que reiteramos a posição do governo brasileiro – e aí nos incluímos – no apoio às justas causas árabes e à luta palestina, reconhecendo seus inalienáveis direitos a auto-determinação, para que tenhamos uma paz definitiva e duradoura, na terra ancestral.
Toda forma de racismo é repudiada. E assim, condenamos o “Apartheid”, condenamos o sionismo da ONU, como no passado condenamos o nazismo, pois vivemos num país verdadeiro caldeirão de raças, que forma uma nova raça, na base do amor, da hospitalidade, da paz e da bondade, apanágios da filosofia árabe.
Acompanhamos, Sr. Presidente, a luta do seu governo e de seu povo em prol da causa árabe. E tem ela a nossa admiração, pois a Síria é a mãe pátria dos árabes e ela representa a figura protetora que irradia sua ação em todas as latitudes, pois, embora dividida no passado recente, mantém acesa a esperança da unidade.
Também o nosso abraço fraterno aos nossos irmãos parlamentares sírios que, como nós, fixam sua luta e seus ideais na busca de uma sociedade justa, harmoniosa e progressista.
Nossa saudação aos companheiros co-irmãos de toda América Latina, que conosco participam deste evento.
Resta, pois, uma última palavra à Mãe Síria: Aqui estamos para receber a tua bênção e trazer-te a nossa saudade!
Salamo Aleikon!”

Belas e sábias palavras do senador João Lobo aos nossos parentes que não vieram ao Brasil. Fomos muito bem representados na ocasião histórica.
Finalmente, deixo aqui um apelo aos carcamanos e florianenses: Em 2009 a Imigração Árabe para Floriano completa 120 anos e estamos deixando a data passar em branco. Mexamo-nos!!


Fonte: Jornal Voz de Floriano, edição nº 560 de 11/10/2009

domingo, 8 de março de 2009

O FISCO E O SR. SALOMÃO

Dentre os árabes radicados em Floriano, o que tem mais influência sobre o folclore esfiha com cajuína é, certamente, o Sr. Salomão Mazuad.

O fato de ele ter sido um dos homens mais trabalhadores da colônia seguramente contribuiu para isso. Comerciante dos bons, laborava da alvorada até depois da aurora, dormindo somente por poucas horas. Não hesitava em obter lucro fácil. Fosse burlando o fisco ou fosse usando seu poder de “persuasão” com o inocente nativo, o “seu” Salomão nunca saía perdendo de qualquer transação comercial.

Aqui são relatados dois “causos” que a comunidade “carcamana” conta, sendo ambos sobre o fisco e este personagem tão singular.

O Fiscal Interestadual

Floriano, desde a sua fundação, sempre contou com uma irmã maranhense, a vizinha cidade de Barão de Grajaú.

Separadas pelo Rio Parnaíba, mas unidas por relações familiares e comerciais, as cidades contavam com a cordialidade que caracteriza a natureza singela dos municípios interioranos.

Pois bem: Barão tinha seu carcamano particular. Tratava-se de um árabe de olhos claros e fala macia, muito querido por todos os que iam ter com ele. Tratava-se de Issa Cury-Rad, que, no Brasil, adotou o nome de João.

Pelo sobrenome, o leitor atento já deve ter percebido o laço sanguíneo do personagem com seu bisneto autor. Assim como relatamos histórias falsas e verídicas sobre os árabes florianenses, obviamente sentimo-nos no direito (e à vontade), quando falamos também sobre nossos parentes. Afinal, de um modo ou de outro, somos todos “brimos” mesmo!

Assim, o João “Carcamano”, como era mais conhecido no Barão, era possuidor de uma mercearia de razoável estoque. Obviamente, um dos fornecedores (talvez o maior deles) era o estabelecimento comercial do “gompadre” e patrício Salomão. A relação entre os dois se estreitara de tal maneira, que o filho varão do Sr. João Cury-Rad foi batizado de Salomão Cury-Rad e levado à pia do altar de Santo Antônio por seu homônimo Mazuad.

Travaram os dois carcamanos negociantes astuta combinação para o não pagamento do imposto interestadual sobre as mercadorias transportadas. A travessia pelo Rio Parnaíba era feita na calada da noite, quando os fiscais estavam no “salutar” hábito da jogatina ou da raparigagem nos cabarés do Lajeiro. Naquelas altas horas, não havia um só vigia, plantonista ou sentinela que desse conta de tráfico tão intenso.

Todavia, contam os alfarrábios do folclore, que, certa vez, uma senhora de pele escura foi indevidamente tratada na casa comercial de Salomão Mazuad, tendo sido confundida com uma caloteira já conhecida do metiê comercial.

Acontece que a tal “Negra Velhaca”, como foi delicadamente alcunhada por um dos funcionários do Sr. Salomão, era tão somente a mãe de um dos fiscais da divisa Floriano-Barão, de modo que este, quando soube do ocorrido, foi tomar satisfações com o proprietário, prometendo-lhe vingança fria e suculenta.

— Carcamano infeliz, tu ainda me pagas essa destratação! Serás multado até por respirar!

— Eu “ser” pobre imigrante honesto! Quem anda “no” linha, não tem medo de multas.

Verdade seja dita: Ele não era pobre e nem andava tão na linha assim, porém realmente não temia multas ou represálias, pois contava com um dos tutanos mais luminosos da colônia árabe de Floriano, sempre sabendo se desvencilhar das mais diversas e desditosas perseguições.

Mas o cerco armado estava por demais fechado. O homem estava tão determinado a se vingar que fazia as refeições no próprio posto de vistoria e, conta-se, estava a café e pó-de-guaraná para flagrar os “traficantes carcamanos”.

O estoque do Sr. João Cury-Rad rendeu várias semanas, mas o cerco não baixava e o arroz de Barão começou a escassear. Eis que o Sr. Salomão prometeu dar um jeito de fazer com que a mercearia de João Carcamano voltasse a receber mantimentos normalmente. Bolou um plano. Ora, o tal fiscal estava perseguindo apenas os carcamanos. Nada fazia contra o ir e vir de mercadorias de brasileiros nas balsas que faziam a travessia. Foi então que o judicioso árabe forçou um de seus funcionários, sob pena de demissão, a levar 15 sacas de arroz “do bom” para Barão, passando-se por comerciante forasteiro. Botou-lhe um bom terno e um dos chapéus da loja e ensinou como fazer a travessia, explicando como se fazer passar por rico mercador. E assim o empregado foi para o cais, cheio de pose, achando que o hábito faria o monge.

Na aduana foi interrogado.

— Pra quem é esse arroz, cidadão? — perguntou o fiscal.

— Pra vender no varejo pra essa gente papa-arroz. — respondeu, todo cheio de confiança.

— E qual a procedência da mercadoria? — retrucou novamente o vingativo fiscal.

A resposta foi delatora:

A cuma é que é, seu dotô?

Foi aí que o fiscal desconfiou. Bem vestido daquele jeito e com vocabulário restrito, ali tinha coisa. Então ele falou grosso:

— Forasteiro, sabia que acobertar carcamano ladrão dá pisa e rende cadeia? De quem é esse arroz, cabra safado?

Nem precisou torturar. O funcionário emendou:

— É do meu patrão, o “seu Salamão”!

— Pois vamos comigo aplicar a multa. A mercadoria já está apreendida.

O Sr. Salomão, que quase não dormia, percebeu a movimentação bem antes de eles chegarem a sua porta. Já se dera conta de que o funcionário o delatara, fazendo por merecer um bom castigo.

Quando chegaram, o judicioso sírio nem se moveu da cadeira onde estava sentado. Contudo, antes que o agente pudesse dizer qualquer coisa ele foi logo se levantando agitado e com presteza disse:

— Meu Deus! Allah u ákbar! (Deus é grande!). A “Bolícia” do Brasil é mesmo muito boa! Já “brendeu” este ladrão de arroz sem-vergonha! Não tem nem duas horas que eu dei queixa!

Diante do relato imediato, o fiscal não teve alternativa. Levou o funcionário delator para a delegacia e teve de devolver o produto do “roubo” para o seu legítimo dono.

Enquanto o vingativo sentinela se ocupava da prisão, o Sr. Salomão fez a travessia do arroz pessoalmente, sem pagar nenhum imposto e nem o frete, pois colocou o translado na conta do fiscal.

Obviamente recomendou ao dono do carro de aluguel que cobrasse logo o agente, pois ele pertencia a uma “raça de gente velhaca”, como a mãe dele, que logo se esquecia a quem devia.

Quando lhe foi cobrada a corrida, o sentinela obviamente negou o pagamento ao taxista, que saiu de mãos abanando.

Todavia, antes de sair disse:

— Bem que o carcamano falou que tu és de uma raça de gente velhaca, ó infeliz.

Lojinha que Dá Sustento.

Certa vez, um bem vestido forasteiro entrou na loja do Sr. Salomão Mazuad perguntando, com relativo desdém, quem seria o dono daquela tão bagunçada lojinha.

Diante de tal aleivosia, o Sr. Salomão realmente reparou a desorganização que caracteriza os empórios árabes. Eram chocalhos de diversos tamanhos e modelos jogados ao chão aleatoriamente, junto com cordas de diversas espessuras e cores, misturadas com ferramentas de agricultura e marcenaria, chapéus multicores, bem como toda qualidade de tecidos e miudezas.

A dureza da verdade nua e crua chocou o comerciante, fazendo com que ele ficasse profundamente magoado com tamanha perfídia e desconsideração. Ainda mais vindas de um forasteiro, desconhecedor do prestígio dos árabes na sociedade de então.

Os olhos começaram a arder e logo se puderam ver lágrimas se formando no rosto do árabe. Indignado ele falou:

— Senhor forasteiro, você fala “do” lojinha do Salomão, mas não sabe de nada! Graças a “este” lojinha bagunçada, Salomão só tem prosperado! Graças a este lojinha, Salomão casou com libanesa mais bonita da região do Zahle e “do” melhor família! Graças a este lojinha comprou todos os salões deste lado da Rua São Pedro. Graças a este lojinha, construí casarão para “meu” família viver! Graças a este lojinha, seu forasteiro de merda, eu pude cobrir “meu” mulher Isabel de jóias, ouro e brilhantes! — e o árabe foi se emocionando cada vez mais, ao passo que sua língua ficava mais ferina.

— Graças a “este” lojinha eu mandei minhas filhas pro exterior, seu língua de trapo maldito! Graças a este lojinha eu “comprou” apartamento no Rio de Janeiro, seu desbocado filho de cachorra sem pai!

Ao concluir o desabafo, o Sr. Salomão estava se tremendo da cabeça aos pés, mas nem percebera o quanto se exaltara.

O estranho, que ouvira tudo aquilo calado, nem se abalou. Simplesmente soltou, num tom bem sarcástico:

— Ô carcamano ricaço, tu sabes quem sou eu, pra falar comigo desse jeito? Deixa de querer ser o “bonzão”, turco expatriado! Isso lá é jeito de falar com um homem que tu nem conheces?

— Pois quem és tu, infeliz?

— Eu sou Pedro da Fonseca Lima, agente e fiscal da Receita Federal Brasileira! — emendou, enquanto puxava o bloquinho de multas.

Vendo a desgraça, o Sr. Salomão exclamou, enquanto forçava um sorriso:

— E o senhor? Por acaso sabe quem está a chamar de turco expatriado?

— Não! — retorquiu Fonseca Lima.

— Eu “ser” Salomão Mazuad, o carcamano mais brincalhão e mentiroso da Rua São Pedro!



Autoria:,
Salomão Cury-Rad Oka
Cirurgião-Dentista

COJEO - Centro Odontológico Dr. João Elias Oka - Seu sorriso é a nossa especialidade!
Rua Fernando Drumond, 621, Centro
Floriano-PI
Tel.: (89) 3521-3700
salomaooka@yahoo.com.br
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HAGEM FOI PRO PARÁ!

Durante a época áurea do comércio árabe em Floriano, popularizou-se, através daquele povo de sangue mercantil, a venda a crédito e a prazo por estas redondezas.

Já era costume o crediário nas casas comerciais de então, tanto para conhecidos quanto para estranhos. Não havia na Princesa do Sul uma única loja carcamana que não vendesse fiado (e com prazer). Aquela arte de tratar bem os clientes, outorgando-lhes confiança, bem como aquele jeito simplório de administrar era novidade nestas paragens.

Usando de arte e abusando de tino comercial, os árabes viram muitos estabelecimentos comerciais de brasileiros nativos perecerem, por não suportarem a concorrência com aquele incansável povo exógeno.

Os forasteiros abriam suas lojas pela manhã, bem antes do amanhecer, pois a grande maioria morava na própria loja, ou num anexo a ela. Elementarmente, fechavam já tarde da noite, em torno das 22 horas, quando a usina elétrica de Maria Bonita apagava as luzes, tornando impossível rasgar tecidos, mesmo sob a luz de lampiões, ainda que fossem fortes.

Ao meio dia não havia a parada para o almoço e nem a sesta tradicional dos brasileiros, que nem de longe agüentavam aquele regime hercúleo de trabalho.

As facilidades eram tantas, que os árabes praticamente forçavam o cliente a comprar, abrindo-lhes linhas de crédito, juros acessíveis e preço e prazo atrativos.

Assim, uma atividade que cresceu muito na Floriano de então foi a de cobrador profissional. Como os árabes jamais abandonavam o posto de trabalho, sempre faziam uso dos serviços de algum publicano ou Zaqueu (como os brasileiros instruídos alcunhavam os cobradores, em referência ao Novo Testamento).

Por 20% da dívida a ser cobrada, o encarregado de cobranças usava das mais variadas maneiras a fim de se arrecadarem os valores devidos.

Aqueles cobradores que nunca levavam calote eram os mais afamados e, por conseguinte, os mais procurados pelos carcamanos para fazer o serviço.

Um dos que sempre obtinha êxito era o Sr. João Perna Forte, mais conhecido pelo epíteto de Freitinha. Era um Zaqueu famoso e realmente bom de cobrança. Tão infalível era, que muita gente atravessava a rua para não cruzar-lhe o caminho.

Certa vez, Freitinha adentrou na Rua São Pedro distribuindo “boas tardes” aos carcamanos. Então cumpriu-se um peculiar ritual: os comerciantes que tinham contas a receber foram para a porta de suas lojas e os que eram devedores de alguém entraram às pressas.

Um dos carcamanos falou:

— Boa Tarde, Freitinha, pelo seu bom humor, você já arrecadou muito hoje, né?

— É, compadre, hoje passei a manhã inteirinha na cobrança — respondeu.

— Não tem nadinha pra mim não? — interrogou o árabe esfregando as mãos.

— Até agora não, mas o dia não acabou ainda, né?

— Tu ganhaste muito dinheiro hoje, heim, Freitinha? Estás muito otimista! Até mais, então!

E Freitinha seguiu pela Rua São Pedro, distribuindo as contas e embolsando a comissão de 20%.

Deixou o Sr. Salomão Mazuad por último e dobrou a esquina, rumo ao cais. Mas logo depois da loja do Sr Salomão, adentrou num pequeno salão quase vazio. Era uma lojinha recém inaugurada, com menos de um ano de funcionamento. Dentro dela, apenas uma senhora de feições nitidamente árabes e tatuagens no pulso e no braço, atendendo a quem chegasse. Ao entrar, Freitinha perguntou:

— Boa tarde, D. Turkia, cadê “seu” Hagem?

Aquela senhora demonstrou uma certa agitação. Começou a falar enrolado, numa algaravia que só trazia confusão, tornando o diálogo incompreensível. É necessário esclarecer aqui, que o Sr. Hagem era o marido de D. Turkia e sobrinho do Sr. Salomão Mazuad.

O publicano respirou fundo, como para apacientar-se e perguntou:

— D. Turkia, cadê “seu” Hagem, que eu preciso tratar de dinheiro com ele e é agora!

A boa senhora respondeu, dessa vez com clareza suficiente para se fazer entender:

— Hagem foi pra Pará! Hagem foi pra Pará!

Freitinha não sabia o que pensar. Não esperava que o carcamano tivesse ido para tão longe sem levar a esposa e os filhos. Não aquele ali, que tinha trazido a família lá da caixa-prego, para não deixá-los sozinhos. Começou a pensar que seu bom humor iria por água abaixo. Respirou fundo novamente e disse a D. Turkia:

— Senhora, eu precisava falar com “seu” Hagem urgente porque no caminho pra cá “seu” Salomão me pediu para entregá-lo a quantia de quinhentos mil réis. O Problema é que o “seu” Salomão é desconfiado e disse que só entregasse o dinheiro na mão dele. Como ele foi pro Pará, eu vou me embora, tá certo?

Nesse momento, os dedos compridos da mulher árabe alcançaram o braço de Freitinha. Quando ele se virou, ela fez que não com a cabeça e disse rápida e judiciosamente:

— Compadre não entendeu. Hagem sabia que Freitinha “vinha” entregar dinheiro de tio Salomão e foi “prapará” recibo pra você!

NOTA DO AUTOR


Prezado internauta,

A título de apresentação, seria interessante esclarecer os objetivos e intenções deste blog. Pretendemos registrar aqui contos e causos vividos por alguns dos árabes radicados em Floriano-PI e sua vizinha Barão de Grajaú-MA.

Espero humildemente que este blog, com o relato de histórias e estórias, sirva para que as gerações vindouras ou exógenas conheçam um pouco do folclore desenvolvido ao longo de mais de 115 anos de convivência pacífica (por poucas vezes nem tanto) entre árabes e brasileiros na Princesa do Sul do Piauí.

Obviamente, depois de tantos anos, estes relatos já fazem parte do acervo folclórico que é patrimônio do povo florianense e baronense, apesar de muitas delas serem fantasiosas (ou não condizentes com a realidade; ou simplesmente caluniosas, se tidas como verídicas ipsis literis). Assim, esta coluna é uma obra de ficção baseada em fatos e personagens verídicos. Seu texto não deve ser tomado como realmente acontecido, pois seria impossível comprovar cada um dos fatos narrados aqui. O autor não se responsabiliza pelo conteúdo das histórias do folclore esfiha com cajuína, mas lembra ao leitor que a intenção deste texto é unicamente imortalizar os personagens e registrar os contos na literatura (haja vista a quase inexistência destes relatos), a fim de que não sejam esquecidos ou engolidos pelo tempo. Não é escopo desta obra ridicularizar ou ofender a memória de nenhum dos personagens aqui citados, sejam brasileiros, árabes ou descendentes. Lembramos que muitas destas histórias nos foram contadas inclusive por parentes das partes citadas ou até por elas próprias! O fundo cômico apresentado na grande maioria das vezes é o que torna o folclore esfiha com cajuína tão peculiar, pois os florianenses somos um povo alegre, resultante da mistura da mais saborosa esfiha com a mais cristalina cajuína.