domingo, 8 de março de 2009

HAGEM FOI PRO PARÁ!

Durante a época áurea do comércio árabe em Floriano, popularizou-se, através daquele povo de sangue mercantil, a venda a crédito e a prazo por estas redondezas.

Já era costume o crediário nas casas comerciais de então, tanto para conhecidos quanto para estranhos. Não havia na Princesa do Sul uma única loja carcamana que não vendesse fiado (e com prazer). Aquela arte de tratar bem os clientes, outorgando-lhes confiança, bem como aquele jeito simplório de administrar era novidade nestas paragens.

Usando de arte e abusando de tino comercial, os árabes viram muitos estabelecimentos comerciais de brasileiros nativos perecerem, por não suportarem a concorrência com aquele incansável povo exógeno.

Os forasteiros abriam suas lojas pela manhã, bem antes do amanhecer, pois a grande maioria morava na própria loja, ou num anexo a ela. Elementarmente, fechavam já tarde da noite, em torno das 22 horas, quando a usina elétrica de Maria Bonita apagava as luzes, tornando impossível rasgar tecidos, mesmo sob a luz de lampiões, ainda que fossem fortes.

Ao meio dia não havia a parada para o almoço e nem a sesta tradicional dos brasileiros, que nem de longe agüentavam aquele regime hercúleo de trabalho.

As facilidades eram tantas, que os árabes praticamente forçavam o cliente a comprar, abrindo-lhes linhas de crédito, juros acessíveis e preço e prazo atrativos.

Assim, uma atividade que cresceu muito na Floriano de então foi a de cobrador profissional. Como os árabes jamais abandonavam o posto de trabalho, sempre faziam uso dos serviços de algum publicano ou Zaqueu (como os brasileiros instruídos alcunhavam os cobradores, em referência ao Novo Testamento).

Por 20% da dívida a ser cobrada, o encarregado de cobranças usava das mais variadas maneiras a fim de se arrecadarem os valores devidos.

Aqueles cobradores que nunca levavam calote eram os mais afamados e, por conseguinte, os mais procurados pelos carcamanos para fazer o serviço.

Um dos que sempre obtinha êxito era o Sr. João Perna Forte, mais conhecido pelo epíteto de Freitinha. Era um Zaqueu famoso e realmente bom de cobrança. Tão infalível era, que muita gente atravessava a rua para não cruzar-lhe o caminho.

Certa vez, Freitinha adentrou na Rua São Pedro distribuindo “boas tardes” aos carcamanos. Então cumpriu-se um peculiar ritual: os comerciantes que tinham contas a receber foram para a porta de suas lojas e os que eram devedores de alguém entraram às pressas.

Um dos carcamanos falou:

— Boa Tarde, Freitinha, pelo seu bom humor, você já arrecadou muito hoje, né?

— É, compadre, hoje passei a manhã inteirinha na cobrança — respondeu.

— Não tem nadinha pra mim não? — interrogou o árabe esfregando as mãos.

— Até agora não, mas o dia não acabou ainda, né?

— Tu ganhaste muito dinheiro hoje, heim, Freitinha? Estás muito otimista! Até mais, então!

E Freitinha seguiu pela Rua São Pedro, distribuindo as contas e embolsando a comissão de 20%.

Deixou o Sr. Salomão Mazuad por último e dobrou a esquina, rumo ao cais. Mas logo depois da loja do Sr Salomão, adentrou num pequeno salão quase vazio. Era uma lojinha recém inaugurada, com menos de um ano de funcionamento. Dentro dela, apenas uma senhora de feições nitidamente árabes e tatuagens no pulso e no braço, atendendo a quem chegasse. Ao entrar, Freitinha perguntou:

— Boa tarde, D. Turkia, cadê “seu” Hagem?

Aquela senhora demonstrou uma certa agitação. Começou a falar enrolado, numa algaravia que só trazia confusão, tornando o diálogo incompreensível. É necessário esclarecer aqui, que o Sr. Hagem era o marido de D. Turkia e sobrinho do Sr. Salomão Mazuad.

O publicano respirou fundo, como para apacientar-se e perguntou:

— D. Turkia, cadê “seu” Hagem, que eu preciso tratar de dinheiro com ele e é agora!

A boa senhora respondeu, dessa vez com clareza suficiente para se fazer entender:

— Hagem foi pra Pará! Hagem foi pra Pará!

Freitinha não sabia o que pensar. Não esperava que o carcamano tivesse ido para tão longe sem levar a esposa e os filhos. Não aquele ali, que tinha trazido a família lá da caixa-prego, para não deixá-los sozinhos. Começou a pensar que seu bom humor iria por água abaixo. Respirou fundo novamente e disse a D. Turkia:

— Senhora, eu precisava falar com “seu” Hagem urgente porque no caminho pra cá “seu” Salomão me pediu para entregá-lo a quantia de quinhentos mil réis. O Problema é que o “seu” Salomão é desconfiado e disse que só entregasse o dinheiro na mão dele. Como ele foi pro Pará, eu vou me embora, tá certo?

Nesse momento, os dedos compridos da mulher árabe alcançaram o braço de Freitinha. Quando ele se virou, ela fez que não com a cabeça e disse rápida e judiciosamente:

— Compadre não entendeu. Hagem sabia que Freitinha “vinha” entregar dinheiro de tio Salomão e foi “prapará” recibo pra você!

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