sexta-feira, 16 de abril de 2010

A CABELA DELA


Certa vez, eu, meus irmãos e papai fomos jogar bola no espaçoso quintal de nossa casa. Ainda é como era naqueles dias que já se foram há vinte anos: uma bela quinta, de areia branca e fina, com uma frondosa mangueira que nos fazia sombra durante as brincadeiras infantis. Colocamos, pois, um par de alvenarias de cada lado de nosso campo simulando as traves e começamos a brincar de tocar a bola. Papai estava recém operado de ponte-de-safena, mas o esforço e a descontração eram prescrições do médico. Ele estava muito feliz e disposto naquela tarde. Estávamos todos descalços e sem camisa, trajando apenas bermudas de tecido leve. Meus dois irmãos mais velhos, David e Oka (que têm apenas um ano de diferença na idade entre si) estavam naquela fase adolescente de competir por tudo. Jogavam acirradamente e, por vezes, com alguma violência num passe ou numa bola dividida. Eu devia ter uns 7 anos apenas e, por ser novo demais, eles meio que me deixavam de fora dos passes, alegando que eu era “café-com-leite”. Papai intervinha pacientemente. Corria, tomava a bola e driblava um deles para tocar pra mim e me ver participando. Isso se repetiu várias vezes naquela tarde e em outros jogos. Mas papai não tinha tanto talento para o futebol quanto tinha para a Odontologia, de modo que, eventualmente, ele fazia um passe ou um toque “bola murcha”. Ria da própria “perna de pau” com altas e gostosas gargalhadas. O Oka Júnior, que é o mais velho, mangava acintosamente, pois era mais ágil. David era menos habilidoso, pois era mais cevadinho e, invariavelmente, era dele de quem papai roubava a bola. Num desses lances, para não ficar por baixo, David deu um senhor bico na canela de nosso genitor, que, de dor, exclamou bem alto uma frase em árabe (hoje eu sei que foi um palavrão bem cabeludo) e disse mancando:
― Meu filho, você quase arrebenta a perna do papai!
Corri ao encontro dele preocupado. Afobadamente perguntei:
― Machucou, papai? Se machucou, a mamãe dá um beijo e a dor vai embora…
Ele se desmanchou na hora e disse me pegando no colo e me dando um cheiro no cangote, apesar do meu suor:
― Meu príncipe lindo! Machucou não, mas “arrancou a cabela dela”!
Os manos enciumaram:
― Aduladorzinho! Aduladorzinho!
Não prestei atenção para o despeito deles. Com a curiosidade atiçada perguntei:
― Pai, o que é “a cabela dela”?
Meus irmãos, mais velhos, pensaram malícia e riram entre si.
Mas papai resolveu-nos ensinar qualquer coisa que nos servisse. Perguntou:
― Vocês sabem quem foi o primeiro árabe que veio a Floriano? ― diante da negativa, continuou ― Foi um parente nosso chamado Antun Gibran Zarur. Ele veio pro Brasil e colocou a primeira padaria de Floriano.
Eu viajei na maionese. Na minha inocência, pensava que a primeira panificadora de Floriano tinha sido a Ypiranga, do meu tio Nonato e da minha tia Jeane. Perguntei:
― Esse Zarur é avô do tio Nonato?
Okinha entendeu ligeiro:
― Seu burrinho, a primeira padaria não foi a “Ypiranga”, a primeira padaria foi a “Recife”!
David interrompeu:
― Burro é tu, Oka! A primeira padaria foi a “Casa do Pão”!
Papai riu compreensivamente da inocência de sua prole e apaziguou-nos:
― Ninguém é burro! Vou explicar e vocês vão entender. O avô do tio Nonato era um carcamano chamado Zacarias Haddad e ele colocou o primeiro cinema do Piauí. Mas a primeira padaria foi Antun Zarur quem abriu. Ficava na esquina do calçadão e fez muito sucesso na época.
Eu perguntei a papai, com meu restrito vernáculo infantil, porque o Pioneiro escolhera uma padaria em detrimento de uma loja de tecidos, como todos os outros imigrantes que vieram em seguida. Papai respondeu com mais informações:
― Quando esse carcamano veio da Síria em 1889, passou pela França. Chegando lá, viu a construção da Torre Eiffel, que foi inaugurada no mesmo ano em que ele chegou aqui. Também conheceu o pão francês. Como ele era uma pessoa muito inteligente, aprendeu a fazer esse pão e trouxe a receita pra Floriano. Aí ele abriu a padaria e ficou muito rico e começou a trazer os parentes dele que tinham ficado na Síria. Foi assim que a colônia árabe de Floriano começou.
Eu estava encantado com a história esclarecedora, mas perguntei com algum atrevimento:
― E o que tem haver esse Zarur com “a cabela dela”?
Papai lembrou-se então porque iniciara a história do Zarur e continuou:
― Eu conheci um parente desse pioneiro. Ele se chamava Gabriel e era um homem muito brincalhão. Adorava fazer graça com os outros carcamanos e com os brasileiros. Tem muita história engraçada dele e essa história de “cabela dela” é invenção dele. Ele contava que tinha ido caçar jacu na roça com um conterrâneo dele chamado Jacob Demes. Os dois gostavam de competir como o Okinha e o Davizinho e, quando um perdia, o outro caçoava. ― interrompi a narrativa:
― Papai, o que é Jacu?
― Jacu é um bicho de carne exótica e de sabor diferente, mas muito apreciado, pois é difícil de caçar devido a sua grande agilidade. Mas, continuando a história, posso dizer que os dois carcamanos faziam silêncio pra não tanger os bichos. Enfim, resolveram se separar para abranger uma área maior, quando, de repente, ouviu-se um tiro seco na mata e um grito. Jacob Demes procurou Gabriel com os olhos e o encontrou no chão com a espingarda fumegante nos braços. Preocupado, buscou por machucados no companheiro. Quando viu que Gabriel tropeçara em arbustos, Jacob perguntou com desdém:
― Acertou Jacu, Gabriel?

Com a arma ainda quente, e esfregando a mão na bunda, que doía da pancada, Gabriel se levantou desajeitadamente e respondeu sem perder o rebolado:
― Não, Jacob, mas arranquei a cabela dela!
Papai riu sozinho da história, ao passo em que se admirava do fato destas “expressões” de carcamanos já fazerem parte do vocabulário da nossa cidade, mesmo sem ninguém saber o porquê. Finalmente, a brincadeira acabou quando ouvimos o grito de minha mãe, que berrava a plenos pulmões, da cozinha, que fôssemos os quatro tomar banho, que estávamos muito sujos e já estava na hora da merenda.

3 comentários:

  1. Esta história, Salomão, ficou bem humorada. Pelo desenrrolar do cotidiano, vc nunca jogou nada quando era criança e muito menos hoje. Acho que um dia, os seus filhos também lhe chamarão de "perna de pau" esforçado.

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  2. Que bom que vc conserva o seu humor.
    Bom fim de semana.
    Um abraço

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  3. Rs. O que importa é que pelo menos o cabra tem que tentar. Hahaha. Mas perna de pau é demais. Hahaha. Abração, AJ.

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