segunda-feira, 25 de outubro de 2010

SABEDORIA SALOMÔNICA


Certa vez comentou-se em Floriano sobre a origem da sabedoria de seu Salomão Mazuad. Teria ele nascido com aquela astúcia? Teria herdado tamanha sabedoria do rei de Israel, juntamente com o primeiro nome? Ou algum episódio lhe ocorreu que o obrigou a ser perspicaz? Não se sabe. O certo é que ele já teria vindo da Síria, sua terra natal, com aquele atilamento de bom vendedor, pois existe no folclore Esfiha com Cajuína uma história que lhe teria acontecido no navio em que imigrou para o Brasil.
Eram idos do começo do século XX, quando o então jovem Salomão decidiu aventurar-se em terras onde não existia o ódio turco. É certo que, na 1ª Guerra Mundial, o domínio dos turcos sobre a Síria foi uma verdadeira peste negra. Os dominadores queimavam vilas, fuzilavam os jovens da resistência e fechavam os poços artesianos das aldeias a fim de privar-lhes de água potável. Os mantimentos eram saqueados, assim como qualquer pertence de valor que o camponês ousasse possuir. O rebanho era abatido e as colheitas utilizadas para alimentar os soldados. Os rapazes eram compulsoriamente alistados no exército turco, de modo que muitos jovens deixaram o conforto de suas famílias para combater em favor de um exército conquistador.
Tudo isto sem considerar-se a barreira religiosa. Os turcos eram otomanos (como, aliás, grande parte do mundo árabe de então). As poucas cidades católicas da Síria viram-se seriamente ameaçadas por um inimigo tão cruel, que não poupava nem os irmãos de religião. É de se imaginar a desgraça que poderia acontecer se cidades católicas como Maalula e Khabab fossem conquistadas pelos turcos otomanos. E justamente por isso essas duas cidades começaram a exportar jovens para as Américas. Muitos foram para os EUA. Outros tantos foram para o Chile e a Argentina. Mas, sem dúvida, a grande maioria dos rapazes dessas cidades optou por Floriano como abrigo seguro contra os turcos.
Para ferir mais ainda o orgulho sírio, todos os documentos oficiais daquela época possuíam o timbre oficial da Turquia e os brasileiros invariavelmente tratavam os portadores de tais documentos de turcos. Um verdadeiro acinte! Uma afronta desditosa! Era muita humilhação que o sírio de então tinha de enfrentar! Mas não Salomão Mazuad. Era-lhe preferível a aventura do desconhecido em liberdade do que a luta armada sem idealismo e em favor de um inimigo cruel. Juntou algumas parcas economias e cobriu-se de muita coragem para embarcar num navio a vapor rumo às Américas. Nessa viagem, possuía somente poucas mudas de roupas acomodadas numa pequena mala e cerca de 5.000 réis em espécie, economizados para dar início à nova vida em terras americanas e muito bem guardados num pacote cuidadosamente preparado.
A viagem costumava durar várias semanas. Lá pelo quinto dia de viagem, uma tragédia aconteceu. O jovem aventureiro perdeu todas as suas economias. O desespero bateu. Como era possível que um árabe atinado perdesse a importância de 5.000 réis? Procurou o pacote pelo navio inteiro, mas não encontrou nem vestígio. Nenhuma pista conduzia ao dinheiro ou a um possível larápio. Como alguém poderia ter-lhe roubado o dinheiro se ninguém, além dele mesmo, sabia do conteúdo do pacote? Pensando bem, devia ter deixado o pacote cair em algum lugar. Mas como encontrá-lo? O jeito seria chamar o capitão da embarcação e comunicar-lhe o fato. Muito solícito, o comandante disse-lhe que a única solução plausível seria divulgar o desaparecimento do pacote e ofertar uma recompensa a quem o encontrasse. E Assim fez Salomão Mazuad. Divulgou que tinha perdido um pacote de dinheiro e que daria a metade a quem o encontrasse. Não demorou muito, apareceu-lhe um jovem turco com os 5000 réis. O sírio contou o dinheiro calmamente e anunciou de uma maneira muito judiciosa:
— Meu caro amigo, fico muito feliz que tenhas achado a “metade” do dinheiro que perdi. Contudo esta é a “minha” metade. Podes agora sair e procurar a tua metade, antes que outro alguém a encontre!
E assim Salomão Mazuad teve sua vingança turca!

domingo, 3 de outubro de 2010

O JUMENTO DE SEU SALOMÃO




Não se sabe bem o motivo, mas apenas uma única família árabe foi para o Barão de Grajaú. Naquelas terras maranhenses, o clã Cury-Rad se firmou com um sortido empório, de onde tirava o sustento. O cabeça da família se chamava Issa Cury-Rad, mas no Brasil, adotou o nome de João. Teve dois filhos: Salomão (em homenagem ao compadre Salomão Mazuad) e a pequena Salomé Cury-Rad.
O velho João amealhou grande fortuna. Passado algum tempo no Brasil, já era senhor de terras e de gado. Seus filhos cresceram saudáveis no salutar ambiente dos anos 30 e 40 de Barão de Grajaú.
A jovem Salomé casou-se com um rapaz garboso da tradicionalíssima família Costa e Silva chamado Fabrício, e o jovem Salomão Cury-Rad casou-se com uma belíssima moça da família Benvindo da Fonseca, de Jerumenha.
Com a morte do velho, Salomezinha e o marido continuaram no Barão de Grajaú, tomando conta dos negócios da família, mas Salomão foi para o interior do Maranhão, onde tinha várias fazendas e onde, posteriormente, entrou para a política. A cidade se chamava João Lisboa.
Salomão Cury-Rad era um homem simples, mas cheio de vida. Seu bom humor era famoso, mas quando se via numa situação pitoresca, suas tiradas eram ácidas e sempre resultavam em interessantes histórias.
Conta-se, por exemplo, que tinha um jardim aberto, com um gramado sempre verde e bem cuidado, onde se sentava todas as tardes para ver os transeuntes e o movimento da rua.
Ali passava o tempo ocioso, ouvindo rádio ou no conversê com os peões e caboclos de suas fazendas. Também recebia seus contatos políticos naquele gramado, onde tomavam decisões eleitorais importantes sentados em gostosas e confortáveis cadeiras de espaguete. Como era chefe político e mandava sozinho e sem oposição, ganhou o apelido de “Galo Velho”.
Salomão Cury-Rad também tinha suas excentricidades, como criar um bode como se fosse um cachorro. Batizou o animal de Bito e o tratava com muitas regalias, dentro de casa, inclusive, estalando os dedos e chamando-lhe pelo nome repetidamente, como a um cachorrinho treinado.

Assim, sentava-se nas cadeiras de espaguete com as pernas estiradas sobre o dorso macio de Bito, enquanto o animal pastava do gramado verde.
Naquele tempo, o veículo mais popular era, sem dúvida, o jumento. A “frota” asinina de João Lisboa era enorme. Muitos jumentos andavam soltos pelas ruas da cidade e, invariavelmente, adentravam nos terrenos baldios, nas quintas, nos pequenos sítios que margeavam o município e nos jardins das casas abertas. Sempre comiam as plantas verdes e deixavam aquele “rastro” malcheiroso de estrume novo.
Salomão Cury-Rad literalmente odiava quando algum jumento entrava em seu gramado, pois sempre o animal se servia da capim que era exclusividade de Bito e ainda fazia cocô onde ele gostava de passar o fim de tarde.
Certa vez, chegou em casa e encontrou um jumento branco pastando no jardim. Resmungou bastante, e chamou um de seus trapizombas para retirar o animal. Enquanto esperava a vinda do jagunço, buscou a cadeira de espaguete e o dorso de Bito para descansar as pernas.
Era tempo de política e, antes que o feitor aparecesse, chegou um matuto se dizendo seu eleitor. O “Galo Velho” ouviu o problema do camponês que disse:
― Seu Salomão, eu tô carecendo muito de um jumento novo, causa de quê eu tinha uma jumentinha que me ajudava lá no sítio, mas ela morreu no parto. Ela me era de muito auxílio, pois trazia no lombo as coisas do sítio pra eu vender aqui na cidade. E eu contava com o jumentinho que ia nascer pra me ajudar também, mas agora eu tou é sem nada.
Ouvindo isso, o olho do velho político teve um breve lampejo maquiavélico. Interrompeu a queixa do camponês dizendo:
― Calma, homem. Se o seu problema for só esse, estamos resolvidos. Leve este jumento branco aqui do meu jardim. Dou ele pra você com toda satisfação!
O tal eleitor ficou muito feliz com o presente que lhe solucionaria o problema. Beijou a mão do “Galo Velho” e saiu satisfeito puxando o jumento pelo cabresto.
Salomão ria da resolução feliz do seu problema e do problema do matuto.
O que aconteceu, porém, é que o tal eleitor era um homem trabalhador e, de fato, o seu sítio tinha alguma produção. Arrumou os insumos em grandes jacás e os colocou sobre cangalhas instaladas no lombo do burrico a fim de vendê-los no mercado central.
Assim que começou a vender, um homem alterado o abordou, alegando ser dono do jumento:
― Cabra safado! Então foi você quem roubou meu jumento!
O camponês trabalhador entrou na defensiva:
― Não senhor! Esse jumento nunca foi seu! Esse jumento era do meu padrinho, o seu Salomão Cury-Rad e foi ele quem me deu! Se for corajoso o suficiente, eu até vou lá com você “mode” tirar isso a limpo!
O acusador tremeu na base, mas topou o desafio.
Quando os dois chegaram no jardim, o velho político, já sabia do que se tratava a pendenga. O acusador escolhendo muito bem as palavras, se queixou para o velho, dizendo:
― Mas seu Salomão, como é que o senhor faz isso comigo? Por que o senhor foi se desfazer de meu jumento, se sou seu eleitor há tantos anos?
O velho interpelou:
― Se você quisesse jumento, não deixaria ele adubando a casa dos outros, cabra da peste! ― e, para não perder o eleitor, teve, de imediato, uma de suas astutas sacadas para resolver o problema. Apontando para um novo asno que lhe invadira o jardim, continuou: ― Mas, se você tá fazendo tanta questão por um jumento, leve aquele marronzinho que tá ali no meu jardim comendo da minha grama! Mas fique sabendo que só vou lhe dar ele porque você é meu eleitor antigo e pra você deixar de confusão!
No final da situação, se livrou do outro jumento, agradou os dois eleitores e ainda posou de justo.

domingo, 15 de agosto de 2010

I'm here!!! Elias Oka Street


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This is the location of "دار العكة"

terça-feira, 6 de julho de 2010

TAMANHO É DOCUMENTO

O sírio Jacob Demes tinha o hábito de cultivar boas amizades. Tinha um círculo de amigos grande, mas rendia atenção especial ao patrício Gabriel Zarur.
Jacob tinha o coração manso e sereno, mas Gabriel tinha o espírito alegre e brincalhão. Passavam muito tempo livre juntos, sempre buscando algo que lhes desse algum entretenimento. Gostavam de caçar e pescar um na companhia do outro, por exemplo.
As pescarias eram muito freqüentes nas Floriano dos anos 40, 50 e 60. O Clube de Regatas, que fica(va) nas proximidades do sítio Mirilândia, recebia os mais ilustres expoentes sociais da Princesa do Sul em alegres piqueniques, competições de regatas e, eventualmente pescarias.
O Rio Parnaíba ainda não tinha sido tão desgastado e corroído como está hoje, de modo que ainda contribuía com peixes grandes e em bom número. O banho era também muito refrescante. Havia diversas árvores frutíferas na beira do rio, que incluía mangas, goiabas, cajás, cajus, umbus, etc. A meninada fazia a festa. Atravessavam o rio em bóias feitas com câmaras de ar de pneus de trator ou de caminhão. Por outro lado, o rio era implacável: muitos incautos morreram afogados nas águas do Velho Monge.
Só mais recentemente é que as pescarias foram transferidas para a região do balneário da Manga, pois os piaus e os surubins ficaram mais raros nas proximidades da cidade.
Gabriel Zarur e Jacob Demes, por sua vez, eram muito partícipes dos movimentos sociais de Floriano. Para caçar, preferiam as proximidades do rio Itaueira, mas para pescar, sem dúvida, a beira do rio Parnaíba era melhor. Foram, certa feita, para a região que fica pouco depois do Regatas e armaram um modesto acampamento de pesca.
Começaram a jogar anzol, mas o rio não estava cooperando com os dois carcamanos. Nem piabinha eles conseguiam tirar da água. Tentaram com isca de borra de coco babaçu, com isca de cuscuz, fiapo de carne, minhocas e nada de vir peixe.
Jacob, sem reconhecer a própria imperícia na caça e na pesca, reclamou do patrício:
― Gabriel, você dá azar! Toda vez que eu vou caçar e pescar com você eu não consigo pegar nada.
O companheiro entendeu a pilhéria e pensou em contar vantagem. Decidido e demonstrando muita convicção, jogou uma pra cima de Jacob:
― Compadre, certa vez eu vim pescar sozinho aqui no Regatas e pesquei um piau de uma braça! Devia pesar uns cinqüenta quilos! Um verdadeiro peixão!
Jacob digeriu a conversa fiada entrando no clima fantasioso:
― Pois eu vim pescar uma vez sozinho. Já estava tarde e logo ficou escuro. Resolvi não desistir de pescar. Quando ficou escuro mesmo, joguei a linha mais ou menos no meio do rio. Compadre, um milagre aconteceu. Eu consegui pescar um lampião aceso! Saí do sufoco da escuridão que nem o Aladin!
Gabriel tirou o chapéu por um momento e coçou a cabeça. Tornou a colocar o chapéu e disse maliciosamente:
― Mas Jacob, pescar um lampião aceso é meio difícil!
O bom Jacob sorriu do patrício, ajeitou a isca no anzol, jogou a linha mais uma vez, e disse triunfante:
― Gabriel, pois você diminua o tamanho do seu peixe que eu apago o meu lampião!

sábado, 29 de maio de 2010

O ÁRABE DO PIAUÍ E A CIGANA DA BAHIA


Certa vez veio a Floriano um grande circo de lona vindo diretamente da Bahia. Achava-se numa turnê que passava por cidades de maior porte, onde circulava dinheiro. Em terras de São Pedro, estabeleceu-se na praça do mercado central (atual Praça Coronel Borges). O circo era completo: tinha desde palhaços até trapezistas voadores que não usavam rede. Havia, ainda, mágicos, domadores de feras e até globo da morte. (uma grade novidade nos anos 60).
Uma das atrações mais populares do circo era, todavia, uma cigana que se dizia capaz das mais poderosas proezas esotéricas. Um anãozinho anunciava aos berros, com uma possante voz de locutor:
― Venha conhecer os prodígios da cigana Morgana Esmeralda, que veio diretamente das Índias Orientais. Por sua “pequena” contribuição, ela quebra feitiços, olho-gordo, quebrante e mal-olhado. Ela traz a pessoa amada em menos de dois dias. Ela lê nas suas mãos o seu destino amoroso e financeiro…
A cigana possuía uma pequena tenda, onde lia a sorte e os reveses de seus clientes por meio de baralhos, búzios, bola de cristal ou quiromancia. Dependia muito do gosto (e das posses) do freguês.
Quando o transeunte não caía na lábia do anão, a cigana Morgana Esmeralda o abordava pessoalmente.
Assim ela fez quando um jovem carcamano muito bem apessoado atravessava a praça do mercado. Chamava-se Fozy Atem, e pertencia a uma tradicional família árabe de Khabab estabelecida há muitos anos em Floriano.
Como era um rapaz de astuciosa inteligência, não podia deixar de ser cético para esses assuntos místicos. Duvidou na hora da idoneidade da “Cigana das Índias Orientais” e ia passando direto, resmungando para si mesmo que existia muita gente trouxa no mundo, quando a vidente o abordou falando teatralmente num sotaque um tanto forçado, que misturava um pouco de portunhol, com baianês e uma leve sonoridade hindu:
― Ó, jovem bonito! Deixa cigana Morgana Esmeralda ler sua mão?
Fozy exclamou olhando para a palma da mão:
― Não tem nada escrito nela não! Muito obrigado!
O árabe já ia continuar, mas ela fez uma segunda tentativa:
― Então deixa cigana Morgana Esmeralda fechar o seu corpo…
Fozy perdeu a paciência e disse em tom de chacota:
― Se você fechar o meu corpo, como é que eu vou cagar?
A cigana empalideceu. Respirou fundo, recuperou a calma e insistiu:
― Ó, jovem bonito! Cigana Morgana Esmeralda ser capaz de ver que você “non” crê nos poderes “márricos” de “nosotros”!
Fozy respondeu que não e pediu licença para poder continuar seu trajeto. Mas a cigana era insistente mesmo:
― Cigana Morgana Esmeralda ser capaz de ver tudo! “Siento que hai uma piedra en su camino”! Por “pequeña” quantia, cigana Morgana Esmeralda tira ela de seu destino!
O educado Fozy Atem perdeu a paciência de vez e explodiu:
― É verdade! Tem uma pedra no meu caminho! E essa pedra é você! Agora sai do meio, cigana fajuta!
A cigana pegou ar. Fazendo gestos cabalísticos com as mãos, praguejou no mais legítimo sotaque da Bahia:
― Ôxe, que hômi amarrado! O diabo te receba no inferno, carcamano miserável! Vai ser sovina assim lá na Turquia, árabe “fela da gaita”!
Fozy devolveu sem perder o rebolado:
― Pelo menos eu sou árabe legítimo! Pior é você, que é uma cigana charlatona da Bahia!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A SORTE ESTÁ LANÇADA



O astuto Salomão Mazuad teve duas filhas: Georgette e Lourdinha. Aquela casou-se com um rapaz do Rio de Janeiro e esta foi desposada por um distinto libanês chamado Constantin Al Salha. Em razão do matrimônio, a noiva trouxe o jovem Costy (apelido carinhoso pelo qual o chamava) para Floriano. Em terras de São Pedro tiveram uma vida plena. Viviam com conforto e desfrutavam de vida social ativa. Porém, em seus últimos anos, Costy Al Salha não gostava de sair muito. Estava começando a envelhecer e ganhara alguns quilos extras por causa da farta e boa comida que lhe era servida. Encontrou um meio de se distrair e preencher o tempo sem precisar sair de casa ou, caso fosse necessário, de não precisar se deslocar muito. Descobriu que suas tardes poderiam ser mais interessantes e menos nostálgicas se as passasse na companhia de um patrício seu contemporâneo jogando gamão, que é um jogo muito comum entre os árabes. Consiste de um tabuleiro chamado “taula”, que significa “mesa”, dotado de doze casas triangulares do lado de cada jogador. Nessas casas dispõem-se quinze peças pretas e quinze peças brancas para os dois adversários e, através de astúcia com a matemática e de sorte com um par de dados lançados a cada rodada, essas peças são movidas pelo tabuleiro e, enfim, uma a uma, vão sendo removidas dele. Ganha o jogo aquele que as remover primeiro.
Logicamente, Costy aproveitava-se dessas ocasiões para discutir sobre a política do Oriente Médio e manter uma boa conversa na língua árabe. Era sua maneira de matar as saudades do Líbano deixado para trás.
Dois carcamanos eram parceiros quotidianos e Costy: Hagem Mazuad, um carcamano que residia logo atrás da Igreja Matriz (e que era primo de sua esposa Lourdes) e Mohamed Aborabi, irmão do Ibrahim da famosa Casa das Sandálias.
Como Hagem e Costy eram vizinhos, passavam mais tempo juntos nesta saudável competição. Hagem era uma pessoa muito instruída e de conversa extremamente agradável. Escrevia lindas poesias e crônicas em árabe e eventualmente as lia para Costy. Foi Hagem quem fez o discurso de saudação ao Embaixador Sírio Ghassoub Rifai, quando este visitou a Princesa do Sul por ocasião do Centenário da Imigração Árabe (uma grande festa comemorativa que aconteceu no Calçadão da Rua São Pedro em 1989).
Por outro lado, Costy também gostava da companhia de Mohamed, pois ele era o único compatriota libanês, haja vista que todos os carcamanos de Floriano eram sírios, exceto os da família Salha e Aborabi (A bela esposa de Salomão Mazuad também era libanesa e chamava-se Isabel Abu Qais, mas voltou para sua terra natal onde vive até hoje. Se houve outros, não há registro disponível até agora).
Durante muitos anos, os três amigos jogaram quase que diariamente, revezando os adversários conforme a conveniência.
Mas, infelizmente, o tempo fora inclemente com o trio de carcamanos. Muitos anos já haviam se passado desde que imigraram para o Brasil e o árduo trabalho diuturno a que se submeteram durante toda a vida prejudicou-lhes na velhice.
Assim Hagem Mazuad foi o primeiro deles a atender ao chamado do Criador. Foi um dia de pranto e luto na Colônia. Os carcamanos remanescentes fecharam suas lojas para, juntamente com muitos descendentes de sírios, irem ao velório prestar suas últimas homenagens.
Costy se abalou bastante com a perda de Hagem, de modo que algum tempo se passou até que voltasse ao tabuleiro de gamão com Mohamed Aburabi.
Logicamente, o laço de amizade entre os dois libaneses era forte e, certa tarde, retornaram às longas e freqüentes partidas e conversas. Jogaram juntos por cerca de dois anos, até que, repentinamente, o Criador também subtraiu Mohamed do nosso convívio. Costy lamentou profundamente a perda do amigo de tantas tardes alegres, quando gritavam bem alto em árabe os lances de dados.
E foi assim que se acabaram as partidas de gamão para Costy. Não tinha mais com quem conversar sobre política, ou literatura. A partir de então, só falaria em árabe com a esposa e com os filhos e netos, pois os amigos e patrícios contemporâneos, Deus já tinha levado.
Quando a saudade das partidas de gamão começou a lhe apertar o peito e as tardes já estavam compridas demais, Costy resolveu ensinar o jogo dos árabes a seu motorista, um homem muito superticioso chamado Lúcio.
Quando o velho árabe lhe clamou o nome com a voz melosa e derretida, Lúcio imediatamente desconfiou que uma bomba viria e se preparou para dizer alguma coisa que lhe rebatesse o pressentimento funesto.
Costy lhe propôs:
― Lúcio, o que você acha de aprender a jogar gamão e me fazer companhia todas as tardes? Desde que Hagem e Mohamed morreram, fiquei sem parceiro de gamão…
Lúcio fez uma careta e exclamou cheio de pavor:
― Deeeeeeus me livre, seu Costy! O senhor já enterrou dois parceiros de gamão! Deus que me defenda!!! Não quero ter a mesma sorte que eles de jeito nenhum!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A CABELA DELA


Certa vez, eu, meus irmãos e papai fomos jogar bola no espaçoso quintal de nossa casa. Ainda é como era naqueles dias que já se foram há vinte anos: uma bela quinta, de areia branca e fina, com uma frondosa mangueira que nos fazia sombra durante as brincadeiras infantis. Colocamos, pois, um par de alvenarias de cada lado de nosso campo simulando as traves e começamos a brincar de tocar a bola. Papai estava recém operado de ponte-de-safena, mas o esforço e a descontração eram prescrições do médico. Ele estava muito feliz e disposto naquela tarde. Estávamos todos descalços e sem camisa, trajando apenas bermudas de tecido leve. Meus dois irmãos mais velhos, David e Oka (que têm apenas um ano de diferença na idade entre si) estavam naquela fase adolescente de competir por tudo. Jogavam acirradamente e, por vezes, com alguma violência num passe ou numa bola dividida. Eu devia ter uns 7 anos apenas e, por ser novo demais, eles meio que me deixavam de fora dos passes, alegando que eu era “café-com-leite”. Papai intervinha pacientemente. Corria, tomava a bola e driblava um deles para tocar pra mim e me ver participando. Isso se repetiu várias vezes naquela tarde e em outros jogos. Mas papai não tinha tanto talento para o futebol quanto tinha para a Odontologia, de modo que, eventualmente, ele fazia um passe ou um toque “bola murcha”. Ria da própria “perna de pau” com altas e gostosas gargalhadas. O Oka Júnior, que é o mais velho, mangava acintosamente, pois era mais ágil. David era menos habilidoso, pois era mais cevadinho e, invariavelmente, era dele de quem papai roubava a bola. Num desses lances, para não ficar por baixo, David deu um senhor bico na canela de nosso genitor, que, de dor, exclamou bem alto uma frase em árabe (hoje eu sei que foi um palavrão bem cabeludo) e disse mancando:
― Meu filho, você quase arrebenta a perna do papai!
Corri ao encontro dele preocupado. Afobadamente perguntei:
― Machucou, papai? Se machucou, a mamãe dá um beijo e a dor vai embora…
Ele se desmanchou na hora e disse me pegando no colo e me dando um cheiro no cangote, apesar do meu suor:
― Meu príncipe lindo! Machucou não, mas “arrancou a cabela dela”!
Os manos enciumaram:
― Aduladorzinho! Aduladorzinho!
Não prestei atenção para o despeito deles. Com a curiosidade atiçada perguntei:
― Pai, o que é “a cabela dela”?
Meus irmãos, mais velhos, pensaram malícia e riram entre si.
Mas papai resolveu-nos ensinar qualquer coisa que nos servisse. Perguntou:
― Vocês sabem quem foi o primeiro árabe que veio a Floriano? ― diante da negativa, continuou ― Foi um parente nosso chamado Antun Gibran Zarur. Ele veio pro Brasil e colocou a primeira padaria de Floriano.
Eu viajei na maionese. Na minha inocência, pensava que a primeira panificadora de Floriano tinha sido a Ypiranga, do meu tio Nonato e da minha tia Jeane. Perguntei:
― Esse Zarur é avô do tio Nonato?
Okinha entendeu ligeiro:
― Seu burrinho, a primeira padaria não foi a “Ypiranga”, a primeira padaria foi a “Recife”!
David interrompeu:
― Burro é tu, Oka! A primeira padaria foi a “Casa do Pão”!
Papai riu compreensivamente da inocência de sua prole e apaziguou-nos:
― Ninguém é burro! Vou explicar e vocês vão entender. O avô do tio Nonato era um carcamano chamado Zacarias Haddad e ele colocou o primeiro cinema do Piauí. Mas a primeira padaria foi Antun Zarur quem abriu. Ficava na esquina do calçadão e fez muito sucesso na época.
Eu perguntei a papai, com meu restrito vernáculo infantil, porque o Pioneiro escolhera uma padaria em detrimento de uma loja de tecidos, como todos os outros imigrantes que vieram em seguida. Papai respondeu com mais informações:
― Quando esse carcamano veio da Síria em 1889, passou pela França. Chegando lá, viu a construção da Torre Eiffel, que foi inaugurada no mesmo ano em que ele chegou aqui. Também conheceu o pão francês. Como ele era uma pessoa muito inteligente, aprendeu a fazer esse pão e trouxe a receita pra Floriano. Aí ele abriu a padaria e ficou muito rico e começou a trazer os parentes dele que tinham ficado na Síria. Foi assim que a colônia árabe de Floriano começou.
Eu estava encantado com a história esclarecedora, mas perguntei com algum atrevimento:
― E o que tem haver esse Zarur com “a cabela dela”?
Papai lembrou-se então porque iniciara a história do Zarur e continuou:
― Eu conheci um parente desse pioneiro. Ele se chamava Gabriel e era um homem muito brincalhão. Adorava fazer graça com os outros carcamanos e com os brasileiros. Tem muita história engraçada dele e essa história de “cabela dela” é invenção dele. Ele contava que tinha ido caçar jacu na roça com um conterrâneo dele chamado Jacob Demes. Os dois gostavam de competir como o Okinha e o Davizinho e, quando um perdia, o outro caçoava. ― interrompi a narrativa:
― Papai, o que é Jacu?
― Jacu é um bicho de carne exótica e de sabor diferente, mas muito apreciado, pois é difícil de caçar devido a sua grande agilidade. Mas, continuando a história, posso dizer que os dois carcamanos faziam silêncio pra não tanger os bichos. Enfim, resolveram se separar para abranger uma área maior, quando, de repente, ouviu-se um tiro seco na mata e um grito. Jacob Demes procurou Gabriel com os olhos e o encontrou no chão com a espingarda fumegante nos braços. Preocupado, buscou por machucados no companheiro. Quando viu que Gabriel tropeçara em arbustos, Jacob perguntou com desdém:
― Acertou Jacu, Gabriel?

Com a arma ainda quente, e esfregando a mão na bunda, que doía da pancada, Gabriel se levantou desajeitadamente e respondeu sem perder o rebolado:
― Não, Jacob, mas arranquei a cabela dela!
Papai riu sozinho da história, ao passo em que se admirava do fato destas “expressões” de carcamanos já fazerem parte do vocabulário da nossa cidade, mesmo sem ninguém saber o porquê. Finalmente, a brincadeira acabou quando ouvimos o grito de minha mãe, que berrava a plenos pulmões, da cozinha, que fôssemos os quatro tomar banho, que estávamos muito sujos e já estava na hora da merenda.